GUSTAVO LUIS MENDES TUPINAMBÁ RODRIGUES[1]
(orientador)
RESUMO: Em estudo objetivou-se a reflexão acerca do direito constitucional de liberdade à expressão e como essa liberdade se estende em suas diversas formas, ademais através das expansivas formas do direito à expressão se buscou analisar como o direito de liberdade é aplicado dentro da música, em específico, no gênero nacional funk interpretando como a expressão é utilizada dentro do gênero e até onde se estende, em contraposição indagou-se também como a utilização do direito à expressão dentro deste gênero musical poderia influência o sujeito instigando ou induzido a criminalidade, assim, centralizando como objetivo e questionamento principal a apologia ao crime dentro das composições em como a utilização da liberdade de expressão dentro do funk poder consumar o delito de apologia através das canções com teor criminal.
Palavras-chave: Liberdade à expressão, funk nacional, criminalidade, apologia ao crime, limitação.
1 INTRODUÇÃO
O direito à liberdade de expressão traduz-se como uma das formas mais extensivas de liberdade, ramificando nas suas várias formas de como essa liberdade pode ser gozada, nota-se que ela pode ser usufruída através do pensamento, da fala e das diversas formas de manifestações artísticas e culturais.
Prevista na Constituição Federal de 1988 o direito de liberdade de expressão, assim como as demais garantias individuais constitucionais, classifica-se como um direito intransigível, indisponível e inviolável.
É através das diversas formas de manifestações que o direito constitucional à liberdade expressão se usufrui. Entretanto, apesar de sua forma extensiva prevista na CF/88, o direito à expressão não possui aplicabilidade e gozo de forma ilimitada, pois seu uso deve ser ponderado com os demais direitos e princípios constitucionais.
Destarte, que através da música é possível, com clareza, evidenciar o uso do direito à expressão, por meio deste direito, a pessoa humana manifesta seus sentimentos, intenções, desejos e demais. Deste modo, a música transmite, de forma concreta, o usufruto do direito à liberdade.
À vista disso, especifica-se o uso do direito constitucional à liberdade de expressão no gênero musical funk nacional/brasileiro já que com o avanço ao acesso cultural na atualidade se percebe a ausência da exploração no campo jurídico sobre o uso do direito da liberdade de expressão dentro da esfera musical.
O funk nacional compõe-se de um gênero musical brasileira de origem periférica, suas composições musicais exprimem o cotidiano vivenciado nas periferias brasileiras, por meio das batidas e letras os denominados Mc’s do funk banalizam a violência, a pobreza e as dificuldades enfrentadas nas mazelas da sociedade.
Deste modo, é imprescindível que o uso da liberdade de expressão dentro das composições musicais do gênero funk seja feito de forma atenciosa, já que exposições de fatos dentro das letras musicais deste gênero podem ser interpretados de forma pejorativa e assim infringir a esfera penal com o delito de apologia.
Nesse sentido, é de suma importância à compreensão do delito de apologia e sua tipificação ou não nas letras compostas do funk nacional, em razão que este gênero é subjulgado e estigmatizado por conta de sua origem e as formas de uso do direito à expressão.
Assim, com base revisões e entendimentos sobre a temática, expõem-se a interpretação do direito à liberdade de expressão no funk nacional em contraposição à apologia ao crime, buscando a ponderação desses termos jurídicos e suas aplicações nas manifestações musicais.
2. LIBERDADE DE EXPRESSÃO
2.1 A hermenêutica da liberdade de expressão
O direito à expressão constitui-se como umas das formas mais ampla do direito à liberdade. A priori, nota-se que o direito à expressão é de vasta importância para o desenvolvimento do ser humano e imprescindível para o pluralismo da sociedade, no entanto, interpretar o termo liberdade não constitui algo simples a ser desenvolvido.
Ao buscar por uma conceituação sobre o termo liberdade observa-se que há como resultado a diversidade de interpretações hermenêuticas acerca de seu significado, isto porque o direito à liberdade encontra-se em um mar de subjetividade, e ao longo dos anos é possível notar que sua interpretação varia de acordo com sua forma e aplicabilidade.
Na visão de Mill (2011) a liberdade constitui-se como uma proteção à sociedade, já que essa se encontra em papel antagônico em relação aos governantes políticos, desse modo, interpreta-se o direito à liberdade como uma “mão protetora” na relação divergente entre estado e sociedade.
No entanto, a visão de Mill não persiste ao passar dos anos, já que como ressaltado acima o direito à liberdade molda sua interpretação de acordo com a época e sociedade vivida.
Já na concepção de Alexy (2008) o direito à liberdade compreende-se como um dos direitos mais fundamentais e obscuros. Nesse sentido, para a visão de Alexy, não há como fundamentar com concretude uma denominação especifica acerca da liberdade em razão da vasta aplicabilidade como direito fundamental.
Dessa maneira, em contraposições as concepções sobre o ideal que seria liberdade, observa-se que havia, ainda, uma ausência sobre a materialidade da liberdade, pois suas interpretações sobre o termo ainda eram superfícies conceituando apenas em uma visão mais teórica sem explicitar como a liberdade poderia ser usufruída.
Assim, essa divergência de concepções do termo liberdade pode gerar a aplicabilidade desse direito de forma intencional e tendenciosa. Pois, de acordo com Alexy (2008) como o termo “Liberdade” se enxerga como algo positivo sua aplicação e forma podem ser mal usufruído, já que se pode alienar alguém para fazer algo afirmando que está amparado sobre esse direito.
No entanto, o termo “Liberdade” não deve ser visto somente em uma visão pessimista em que seu uso possa ocasionar má resultados pela falsa sensação de está amparado pela legalidade de um direito, visto que a liberdade é essencial para o desenvolvimento de uma sociedade democrática.
À vista disso, em uma visão mais moderna sobre o que é liberdade, abandona-se a interpretação que a liberdade seja algo ruim e se passa a entender que a liberdade é indispensável para o homem.
De acordo com Potiguar (2015), o direito à liberdade conceitua-se como um direito de possuir crenças e opiniões que podem ser expressas por meio da arte, da música, da fala e, inclusive, através do silêncio.
Desse modo, encontra-se a materialidade do direito à liberdade, compreendendo que ela se traduz como um direito que se pode ser usufruído através das diversas formas de expressão.
Assim, com a compreensão sobre o termo liberdade e que ela pode ser exercida através das formas de expressões, é possível, aprofunda-se subjetivamente acerca das formas de liberdade de expressão, sem que acabe adentrando em interpretações espaças ou abstratas.
2.1.1 Expressão e a problematização de sua aplicabilidade e extensão
A priori, uma vez entendido que o direito à liberdade carrega em si uma rama de interpreções acerca de sua definição, é de suma importância também compreender sua extensão e aplicabilidade.
Ante adentrar sobre suas formas de aplicabilidade é necessário saber que o direito à liberdade se estrutura em liberdade positiva e negativa, essa sendo a de maior importância para aplicabilidade do direito à liberdade.
Na visão de Alexy (2008), no aspecto negativo o direito à liberdade se constitui como forma mais ampla do direito, sendo exemplificada na garantia da pessoa fazer algo, já à concepção da liberdade positiva compreende-se como um instrumento para delimitar a liberdade.
Deste modo, partindo-se da cognição sobre as estruturas do direito à liberdade, adentra-se sobre a aplicação deste direito. Previsto na Constituição Federal de 1988, o direito à liberdade se ramifica em diversas formas, sendo através do direito de ir e vir, da escolha religiosa, da falar e até do silêncio.
Em especial, aborda-se sobre o direito à expressão, sendo essa uma das maiores formas de liberdade. Concebido pela carta magna, o direito à liberdade de expressão compreende-se como o direito de exprimir opiniões e expressões físicas e mentais, além disso, o direito à expressão constitui uma forma de delimitar o controle estatal.
Nesse sentido, observa-se que o direito à expressão não é somente apenas um direito materializado na constituição e sim algo que sem sua presença transforma o homem em um ser inerte ou sem vontade.
À vista disso, discorre-se que o direito à expressão se usufruí em diversos modos, na interpretação de Silva (2013) o direito à liberdade de expressão se exterioriza como um meio de criação e compartilhamento de pensamento.
Assim, agregando ao entendimento de Silva se observa que há aplicabilidade do direito à liberdade, em especial a garantia à expressão, através da fala, da arte, da música ou qualquer outra forma que há de exteriorizar pensamentos.
Além disso, como o direito à expressão encontra-se previsto na constituição federal de 1988, inclusive, sendo também uma garantia fundamental, destaca-se sua aplicabilidade normativa de forma imediata prevista no parágrafo primeiro do artigo quinto da carta magna.
Segundo Masson (2020), a norma de aplicabilidade imediata possui a capacidade de produzir seus efeitos de forma imediata. Assim, o direito à expressão pode ser usufruído de forma instantânea sem circunstâncias que impeça sua aplicabilidade no momento.
No entanto, questiona-se sobre a extensão deste direito constitucional, pois apesar ser uma garantia fundamental de extrema relevância, sendo imprescindível para usufruto de outros direitos fundamentais, seu uso sem nenhuma filtragem pode influir em colisões e conflitos que acabam lesando outros direitos.
Em exemplo clássico, cita-se o famoso caso Elwange (HC 82. 424) em que o autor Siegfried Ellwanger Castan, baseado em seu direito de expressão escreveu e publicou em sua autoria livros que afirmavam com precisão a inexistência do holocausto judeu que ocorreu na segunda guerra mundial.
Assim, diante a repercussão de suas obras, houver a intervenção do Supremo Tribunal Federal, manifestando que Elwange não estava amparado legalmente na garantia fundamental à expressão já que suas manifestações não tinham cunho expressivo e sim teor discriminatório, inclusive, sendo condenado pelo crime de racismo.
Nesse sentido, amplia-se a discussão sobre extensão do direito à expressão nas demais formas de exercício deste direito, indagando quando sua aplicabilidade deixa de ser direito e passar a lesionar as demais garantias e princípios fundamentais.
Entretanto, questionar sobre a extensão do direito à expressão em suas diversas formas trata-se de algo cauteloso, já que o direito à expressão, não importando a sua forma, é necessário para o homem. De acordo com Carneiro (2016) o direito à expressão é de extrema relevância, pois seu uso visa proteger a dignidade da pessoa humana.
Porém, como destacado, esse mesmo direito quando utilizado de forma tendenciosa ou exagerada para ressaltar opiniões, tende a mais oprimir do que libertar. Em outras esferas do direito de expressão se percebe que não somente na sua forma de escrita que há problematização de seu uso.
Não obstante, a discussão sobre o uso do direito à liberdade de expressão não se limita somente no campo da escrita, em 2019 o canal Porta dos fundos repercutiu nacionalmente com a publicação do seu filme de especial de Natal que trazia como personagem principal Jesus homossexual.
E novamente a discussão sobre o uso do direito à expressão se estendeu ao STF com pedidos que de que o filme fosse censurado, pois “ultrapassava” a uso do direito à expressão, ferindo a moral e a religião.
Desse modo, verifica-se que o questionamento sobre o uso do direito à liberdade de expressão nas suas diversas formas não constitui apenas a mera didática de discussões acerca de um tema e sim a abertura jurídica para exploração sobre como um direito influencia as outras esferas quando é utilizado de forma extraordinária.
2.1.2 Liberdade de expressão musical: paralelo entre uso e abuso do direito
Conforme discorrido anteriormente, verifica-se que o direito à expressão se transborda em diversas formas, dentre elas, através das manifestações musicais. De acordo com Stroppa (2015) a música compõe-se de uma forma de extensão de liberdade, sendo através dela que o artista manifesta seu direito.
A Constituição Federal de 1988 explícita e garante as manifestações culturais e artísticas, desse modo, há uma segurança jurídica amparando o artista ao manifestar seu direito à expressão por meio da música.
No entanto, não é somente de hoje que há a importância do amparo da liberdade de expressão nas manifestações musicais, em períodos excepcionais e ditatoriais a música foi utilizada como um dos principais instrumentos para rebater a censura.
Artistas como Belchior, Elis Regina e Caetano Veloso expressavam críticas ao período vivenciado através de melodias e refrãos que eram compostos nas letras musicais. Entretanto, apesar do reconhecimento da extrema importância do direito à expressão nas manifestações musicais é inegável que assim como as demais formas de liberdade de expressão há também discussões acerca da extensão deste direito na esfera musical.
A principal indagação de debates sobre o direito à expressão e as manifestações musicais é a complexidade e a ausência de uma legislação que regule como devem ser feitas as produções musicais e a facilitação do compartilhamento dessas produções por meio da internet.
Na visão de Stroppa (2015), com a facilitação do acesso midiático através das mídias sociais há uma intensificação do abuso do direito à expressão, já que há inversão de papéis nas redes de comunicações, fazendo com que as pessoas tomem o papel ativo da relação.
Deste modo, é possível notar que o direito à expressão dentro da música se torna uma ferramenta de exteriorizar vontades e pensamentos na esperança de que haja concordância destes pensamentos na relação artista e ouvinte.
Assim sendo, com a diversidade de gêneros musicais que há no Brasil é possível analisar que o direito à expressão é usufruído de forma variada, consequentemente com a variação desse usufruto da liberdade há também, novamente, a discussão da utilização do direito de liberdade de expressão nestes gêneros musicais.
Destarte que a compreensão do direito à expressão dentro do âmbito musical traz uma das principais características do direito a liberdade que é seu caráter não absolutista. Assim, a simples indagação que o direito à expressão não é absoluto geram questionamentos sobre até qual ponto é liberdade de expressão nas músicas.
Em gêneros musicais como rock, sertanejo e funk há mais aprofundamento desta discussão da musicalidade versus o direito à expressão, em principal, pelo primeiro gênero ser bastante polêmico tendo letras com teor pesado e os demais por aprofundarem temas que muitas vezes envolvem e enquadram-se como crimes de injúria, violência e o uso de entorpecentes.
Consequentemente, com as indagações sobre o direito à expressão dentro das músicas há também o embate de diversos outros problemas, se por um lado há a conquista de poder se expressar através da melodia, do outro há quando essa melodia passa a mais ferir o direito do terceiro do que o libertar.
À vista disso, criasse-se abertura para interpretar quando o direito à expressão, utilizado em sua forma musical, deixa de ser uma garantia fundamental e passar a figurar no papel antagônico nas relações lesionando e impedindo o usufruto dos demais direitos.
3 – FUNK NACIONAL
3.1 Funk nacional e a origem da liberdade de expressão periférica
Composto por uma musicalidade marcante e excêntrica o funk nacional constitui-se mais que um simples gênero musical nacionalista, marcado por uma trajetória de estigmas e preconceitos, ainda é, um gênero bastante discutido sobre suas composições e musicalidade.
De origem periférica, o funk brasileiro/nacional teve seu surgimento entre as décadas de 60 e 70, sendo um gênero que retrata principalmente as mazelas da sociedade.
Segundo Amorim (2009), o funk nacional é marcado pelo erotismo e opor uma conexão à musicalidade negra norte-americana dos anos 60.
No entanto, sempre houve abertura à discussão do direito à liberdade de expressão dentro do funk. Em princípio, a abordagem dessa discussão com o funk dar-se desde o seu surgimento, sendo um dos principais fatores para os debates o fato do funk nacional não ser um gênero “elitizado”.
À vista disso, por sua origem não elitista, o funk nacional teve como um dos efeitos os questionamentos sobre a intervenção ao uso da expressão e consequentemente sua ligação à criminalidade.
De acordo com Facina (2009), o ápice para associação do funk com a criminalidade teve origem por meados da década de 90, na época, as mídias de comunicações publicavam noticiais sensacionalistas sobre chacinas de Candelário e Vigário e as associações delas ao funk.
Desse modo, observa-se que historicamente há tentativa de criminalização do funk nacional, inclusive, não somente na década de 90 havia tal concepção de associação de criminalidade com o gênero.
Há exemplo, em 2017 o funk nacional virou sugestão de pauta para discussão de projeto de lei (sugestão nº 17 de 2017) no qual afirmava que o funk constituiria crime de saúde pública à criança, aos adolescentes e à família.
Assim, é de análise que o funk sofreu e sofre diversas tentativas de intervenções à suas formas de expressão, seja por sua analogia à criminalidade no país ou pelas alegações que o funk em si constitui um tipo penal.
Com efeito, exalta-se que as simples indagações de criminalidade no funk não são possíveis de limitar a sua garantia à expressão, pela complexidade de interpretar o usufruto ou da liberdade de expressão.
Nesse sentido, o autor Robert Alexy explicita a possibilidade da intervenção do direito à expressão na esfera artística:
São proibidas intervenções estatais em atividades que façam parte do campo artístico se tais intervenções não forem necessárias para a satisfação de princípios colidentes que tenham hierarquia constitucional (que podem se referir a direitos fundamentais de terceiros ou a interesses coletivos), os quais, devido às circunstâncias do caso, têm primazia em face do princípio da liberdade artística. (ALEXY, 2008, p. 142).
Desta forma, o autor reforça que para o ramo artístico sofrer intervenções ou limitações na sua liberdade de expressão deve ser justificado de forma plausível e de maneira comprovada que há colisão do direito à expressão com as demais garantias constitucionais.
Por outro lado, no funk nacional há exemplos concretos de como o direito à expressão pode sofrer limitações, tanto pela colisão com as demais garantias constitucionais como também com as demais esferas jurídicas.
3.2 Funk nacional: Liberdade ou crime?
O funk nacional sempre possuiu uma visualização de um gênero que deveria ser utilizado de forma limitada, seus versos e composições eróticas retratam o habitual vivido nas zonas periféricas da sociedade.
Nesse sentindo, sob a édige do direito à expressão é de importância retratar quando essa musicalidade colide com os demais direitos e garantias.
Assim sendo, em 2013 o Tribunal Regional Federal da 4ª região condenou a produtora musical furacão 2000 (AC 0001233-21.2003.4.04.7100) a dano moral difuso pela música “tapinha”, segundo o TRF 4ª apesar da ação não envolver temática na esfera penal a letra da música remetia à apologia ao crime e o apelo discriminatório de gênero.
Desse modo, a conclusão do Tribunal Regional Federal da 4ª região desfaz a interpretação que a limitação do direito à expressão na esfera artística é algo complexo a ser feito, visto que é plenamente possível a limitação quando há lesão nos demais direito.
À vista disso, em repercussão há também o caso da composição “só surubinha de leve” do Mc Diguinho que teve por decisão da ação civil pública nº 5052820-72.2019.4.02.5101 a retirada da canção das plataformas de streaming por considerar que trechos da música faziam apologia ao crime de estupro.
Brota e convoca as putas/Brota e convoca as putas/ Mais tarde tem fervo/Hoje vai rolar suruba/ Só uma surubinha de leve/surubinha de leve com esses filha da puta/Taca a bebida/ Depois taca a pica/E abandona na rua.
Em trecho retirado da citada música demonstra-se que a composição, de forma bastante explícita, faz alusão ao crime de estupro de vulnerável tipificado no artigo 217-A, §1º do Código Penal.
Portanto, descarta-se a visão que pela liberdade de expressão por ser algo grandioso adquirido pelo homem não deve ser interrompida ou limitada, já que a “doutrinação” de algo que é repundiante ou criminoso pode e deve ser intervido.
Assim sendo, a forma apelativa narrada nas composições leva ao entendimento que muitas frases ditas nas músicas incitam e exaltam em forma de apologia à criminalidade, induzido ou instigando a produção de crimes.
Desta forma, o embate nas músicas com teor criminoso e apologético levam a crer que é plenamente capaz que o direito à expressão seja limitado em seu uso, desde que sua forma de expressar incitem a explanem a criminalidade.
No entanto, em contrapartida com entendimento dos tribunais há a concepção de que não se deva limitar musicalidade, pois ela apenas reescreve a realidade, pouco influenciando criminalmente.
Segundo a psicóloga Dr. Luciana Moretti Fernández essa violência descrita nas canções pouco influencia na criminalidade:
O universo cantado no funk de apologia do crime, articulado em torno da vivência de um conflito armado, da estruturação no braço nervoso dos comandos e da blindagem afetiva e cognitiva encontra, assim, paralelos nos mapas da violência. Cabe indagar então sobre os elementos simbólicos que compõem esse universo, tornando-o atraente apesar de sua carga sinistra e das escassas garantias de êxito. Além disso, a crueldade tanto entre integrantes do mundo do crime quanto em agressões praticadas contra vítimas não relacionadas com a criminalidade é significativa. Essa escalada não é explicável apenas por razões econômicas.
(FERNANDÉZ, 2015, PAG. 4)
À vista disso, antes do impedimento da utilização da garantia à expressão é necessário que haja uma ponderação entre a composição musical versus a compreensão no delito de apologia em face que é necessário entender quando é apologia, exaltação de crimes ou apelo discriminatório de gênero ou quando é apenas a mera interpretação do cotidiano vivenciado pelos artistas de funk.
Assim, é necessária a interpretação e compreensão da apologia ao crime em face de sua estrita descrição e interpretação do que possa ser considerada apologia, ademais buscando sua compreensão aplicada dentro do gênero musical funk.
4.APOLOGIA AO CRIME
4.1 Apologia ao crime e sua análise e aplicabilidade
Partindo do entendimento sobre liberdade de expressão introduzida no ambiente do funk nacional é necessário também à apresentação de como é incorporado o Direito Penal na esfera musical.
Nesse sentido, é de extrema importância abordar que o Direito Penal atua com caráter fragmentado. De acordo com Capez (2020) só deve haver atuação do Direito Penal quando não houver capacidade das outras esferas jurídicas de atuarem.
Assim, partindo-se dessa concepção leva-se ao entendimento que o Direito penal além de seu caráter subsidiário e fragmentado é atuante apenas no último ratio. Por conseguinte, esta visão de último ratio do Direito Penal serve não somente para delimitar o seu uso como também limitar a atuação estatal.
À vista disso, sobre esta visão da aplicabilidade do Direito Penal ressalta-se o delito de apologia ou como expresso no Código Penal “apologia ao crime”. Expresso no artigo 287 do Código Penal o delito de apologia prevê “fazer, publicamente, apologia de fato criminoso ou de autor de crime”.
Nesta concepção, percebe-se que o crime de apologia visa à aplicação da punibilidade de quem, de forma intencional, explana crime ou autor de crime publicamente. De certa forma, exigi-se certa cautela à aplicabilidade do delito de apologia.
De acordo com Bitencout (2018), a apologia ao crime deve ser analisada de forma cautelar em seus aspectos subjetivos e objetivos, evitando que a linguagem seja censurada à vista de que a expressão é um direito garantido pela Constituição Federal.
Assim, levando para atualidade é de se notar que apesar de sua análise ser feita de forma cautela, ainda é possível, a aplicação da apologia ao crime como visto nas decisões citadas acima. Levando para problematização do funk há uma linha tênue entre as decisões que interpretam que há apologia ao crime nas canções e a visão que é apenas a utilização do direito à expressão resguardado pela Constituição.
Para Bitencout (2018) a maior problemática do delito de apologia é compreender se é incitação de forma indireta do crime ou apenas a explicação dele. No funk é possível com visibilidade compreender a indagação de Bitencout já que os versos compostos nas publicações se dividem em citar de forma sutil a criminalidade ou exaltar indiretamente os crimes.
Ademais, para a compreensão da apologia exige-se a publicação do ato. Na interpretação de Jesus (2020) é necessário que o enaltecimento e o exaltar do crime seja feito de forma pública já que a simples defesa de algo não configura em si a apologia.
Dessa forma, é necessário que além da composição com o exaltamento do crime ou do autor do crime é indispensável também que o ato seja feito de forma publica. Assim, na atualidade as plataformas de streaming se tornam indispensáveis para análise do delito de apologia dentro do funk.
Neste sentido, há necessidade de que o julgador análise de forma concreta se é somente a mera descrição de um crime ou autor do crime ou a utilização de forma indireta para enaltecer a criminalidade.
Em razão disso tudo há ainda a divergência se na atualidade com a facilitação do compartilhamento das formas de expressão, ainda é possível à aplicação deste delito. Na concepção do doutrinador Viana (2011) a apologia ao crime trata-se de um crime totalmente incompatível com a Constituição Federal, pois se contrapõem ao direito constitucional à liberdade.
Assim, seguindo o mesmo eixo de pensamento de Viana há também a visão Sarlet e Neto (2017), segundo os autores não se pode justificar que uma pessoa cometa um crime amparado na ideia de outrem já que cada um possui o livre arbítrio.
Deste modo, o delito de apologia mostra-se, de certa forma, ser um delito bastante subjetivo que de certo modo, requer uma análise crucial e precisa para identificar se há sua tipificação. Ademais, esta análise torna-se ainda mais detalhada e subjetiva quando é introduzida dentro do funk nacional, em razão, que se analisa o crime em contraposição com a garantia à expressão.
4.2 A apologia ao crime na musicalidade do funk nacional
No lapso temporal, o funk foi concebido com estigma de gênero absolutamente periférico, porém tal estrutura, muitas vezes, apenas harmoniza-se com a realidade vivida nas favelas brasileiras.
Abrir espaços para o direcionamento da criminalidade com o funk reflete-se em como a realidade está sendo expressa dentro das músicas.
Neste contexto, essa forma de expressão dentro do funk pode levar a falsa sensação de representatividade, quando de fato induz a criminalidade.
Por tais razões, que há como discorrido anteriormente ações tanto cíveis como penais sobre como a criminalidade é exposta dentro do funk e como tais ações refletem no subjetivo destes consumidores de conteúdo e da sociedade.
Em decorrência deste paralelo entre as músicas e a criminalidade é que há a visão internamente da apologia ao crime nas canções, de modo que a romantização da criminalidade dentro do funk induz, de certo modo, que o delito é certo e vangloriado.
Em tese, vale destacar novamente como a doutrina identifica e visualiza a apologia ao crime. Assim nas palavras de Bitencourt:
A conduta típica, nos termos do nosso diploma legal, segundo a antiga doutrina, é fazer apologia, que tem o significado de elogiar, exaltar, enaltecer, destacar qualidade, virtude ou aptidão do autor enquanto criminoso, ou vantagens, benefícios ou consequências favoráveis do fato delituoso.
(BITENCOUNT, 2019, PAG. 2090)
Deste modo, relacionar a apologia ao crime no funk de forma interna e diretamente requer que além da exposição da autoria ou do delito seja feito de forma de destaque tal que de interpretação superficial seja possível notar o conteúdo criminoso dentro da composição.
Por conseguinte, há ainda indagação que mesmo que seja publicado conteúdo criminoso na música há possibilidade da não aplicação do tipo penal já que o exaltar em si não se denomina no fazer do crime. Destarte a visão de Bitencourt:
acreditamos que a “conduta” descrita não cria nenhum alarma social, não reproduz nenhuma repercussão perturbadora, não passando, de regra, de simples manifestação pacífica de um pensamento, por vezes, um desabafo, um exercício de liderança, e, na maioria dos casos, a coletividade apenas ouve como uma das tantas pregações, forma ou não a sua opinião, a favor ou contra, sem qualquer repercussão positiva ou negativa no meio social. Enfim, mesmo que a suposta conduta possa adequar-se formalmente à descrição do tipo penal, materialmente não gera efetiva ofensa ao pretenso bem jurídico protegido, que, aliás, é meramente produzida.
(BITENCOUNT, 2019, PAG. 2086)
No entanto, na atualidade, com o avanço tecnológico de compartilhamento de gostos, pensamentos e expressividade, cria-se uma maior facilidade da exteriorização desses pensamentos com teor criminoso no funk.
Assim, ainda há, como contestar que apesar do conteúdo criminoso representado nas canções do funk parecer inofensivo, pode resultar na influência para prática dos demais. Os denominados funks “proibidões” são exemplos práticos de como funk em junção com os delitos podem ser utilizados para expor e atrair a criminalidade.
Em questões de associação ao crime com funk é possível notar o teor “apologético” nos denominados “funks proibidões”. O funk proibidão retrata a realidade das favelas junto com a ligação às facções e a violência policial (STALDONI, 2019).
Portanto, perante o discorrido se entende que apesar da apologia ao crime ser interpretada como termo em desuso ou que não influência em termos de incidência criminal é ainda possível verificar seu usufruto no funk como forma de exteriorizar e publicar o conteúdo criminoso.
5 CONCLUSÃO
A produção deste trabalho possibilitou momentos de reflexão acerca do uso da liberdade de expressão e como ela em caráter subjetivo dentro do funk pode ser analisado em conjunto com o direito penal.
Assim, abriu-se espaços para a interpretação, diálogo e reflexão sobre a temática e como o termo liberdade pode ser destrinchado nas diversas áreas e formas.
Deste modo, observou-se como o tema aplicado no contexto da musicalidade do funk gera inúmeras discussões, dentre elas, o projeto de restrição de liberdade dentro do funk.
Em consonância, estes debates sobre o funk como voz de liberdade abrem espaço também para a contextualização da apologia ao crime e consequentemente a criminalidade dentro das composições.
Por tal razão, interpretou-se como é aplicado a apologia ao crime e como é possível presenciá-la dentro das composições musicais do funk. Assim, há como resultado que apesar da aplicabilidade da apologia ao crime ser visualizada dentro do funk e comprovada perante decisões dos tribunais, ainda assim é de uma aplicabilidade bastante adversa.
Por fim, encerra-se este trabalho como a reflexão sobre o encaixe dos temas e como um gênero popular e de origem periférica pode abrir espaço para reflexão jurídica sobre até onde vai o direito à liberdade desfazendo da ideia utópica sobre o absolutismo das garantias constitucionais e como direito penal, apesar de sua visão de último ratio, é aplicado por questões de repercussão em uma música.
REFERÊNCIAS
ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais, 5ª. ed. Tradução Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros editores, 2008.
AMORIM, Marcia Fonseca de. O discurso da e sobre a mulher no funk brasileiro de cunho erótico: uma proposta de análise do universo sexual feminino. 188 p. Tese (doutorado) – Campinas – SP: Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Estudos da Linguagem, 2009.
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal vol. 4. 12. ed. São Paulo – SP: Saraiva Educação, 2018.
______________, Cezar Roberto. Código Penal comentado, 10. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988.
_________, Decreto-Lei 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Código Penal. Rio de Janeiro – RJ: Diário Oficial da União, 31 de dez.
CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal Vol. 3. 18. ed. São Paulo – SP: Saraiva Educação, 2020.
CARNEIRO MATOS, M. Direitos e garantias fundamentais e aplicabilidade imediata. Brasília- DF: E-Legis, n. 8, p. 66-81, 2016.
FACINA, Adriana. Não me bate doutor”: funk e criminalização da pobreza. Comunicação apresentada no V Enecult, Salvador-BA, 2009.
GUERRA, Rayanderson, Desembargador censura especial de Natal do Porta dos Fundos na Netflix para 'acalmar ânimos', 2020. Disponível em: https://oglobo.globo.com/politica/desembargador-censura-especial-de-natal-do-porta-dos-fundos-na-netflix-para-acalmar-animos-24178422
JESUS, Damásio de. Direito Penal vol. 3. 24. ed. São Paulo – SP: Saraiva Educação, 2020.
MASSON, Nathalia. Manual de Direito Constitucional. 8. ed. Salvador – BA: JusPODIVM, 2020.
MILL, John Stuart. Sobre a liberdade, Ed. especial. Tradução Pedro Madeira. Nova Fronteira – RJ: Editora Saraiva, 2011.
MORRETI FERNÁNDEZ, L. Formas de vida no mundo do crime: análise exploratória através do funk proibidão. São Paulo – SP: Lumina, 2015.
POTIGUAR, Alex Lobato. Discurso do ódio no Estado Democrático de Direito: o uso da liberdade de expressão como forma de violência. 2015. 196 f. Tese (Doutorado em Direito) —Universidade de Brasília, Brasília, 2015.
Programa e-Cidadania. Criminalização do Funk como crime de saúde pública a criança aos adolescentes e a família, 2017. Disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/129233.
RIO DE JANEIRO, Justiça Federal, Ação Civil Pública, Ministério Público Federal, Rio de Janeiro, 2018. Disponível em: https://www.ajufe.org.br/fonadirh/banco-de-decisoes-em-direitos-humanos/14013-acao-civil-publica-n-5052820-72-2019-4-02-5101-rj.
RIO GRANDE DO SUL, Superior Tribunal de Justiça, Habeas Corpus n. 82424. Relator Min. Moreira Alves, Brasília, 2004. Disponível em: https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/sjur96610/false
RIO GRANDE DO SUL, Supremo Tribunal Federal, Recurso Especial nº 1278070. Relator Min. Roberto Barroso, Brasília, 2020. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5949675.
SARLET, Ingo Wolfgang; WEINGARTNER Neto, Jayme. Liberdade de expressão: algumas ponderações em matéria penal à luz da Constituição Federal do Brasil. Joaçaba, v. 18, n. 3, p. 637-660, set./dez. 2017.
SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 37. ed. São Paulo: Malheiros editores, 2013.
STALDONI, Luísa Schenato. Circulando à margem do sistema: O “Funk Proibidão” midiatizado. Anais de Resumos Expandidos do Seminário Internacional de Pesquisas em Midiatização e Processos Sociais, v. 1, n. 3, 2019.
STROPPA, Tatiana; ROTHENBURG, Walter Claudius. Liberdade de expressão e discurso do ódio: o conflito discursivo nas redes sociais. Santa Maria – RS: Revista Eletrônica do Curso de Direito da UFSM, v. 10, n. 2, p. 450-468, 2015.
VIANNA, Túlio Lima. O crime de apologia como instrumento de censura. Teresina – PI: Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, 2012.
[1] Professor do Curso de Direito do Centro Universitário Faculdade Santo Agostinho – UNIFSA. Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul-PUCRS. E-mail: [email protected]
Acadêmica do Curso de Direito do Centro Universitário Faculdade Santo Agostinho – UNIFSA.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LOPES, Victória Maria. Da liberdade de expressão e a apologia ao crime nas músicas do gênero funk brasileiro Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 09 jun 2022, 04:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos /58638/da-liberdade-de-expresso-e-a-apologia-ao-crime-nas-msicas-do-gnero-funk-brasileiro. Acesso em: 28 dez 2024.
Por: LUIZ ANTONIO DE SOUZA SARAIVA
Por: Thiago Filipe Consolação
Por: Michel Lima Sleiman Amud
Precisa estar logado para fazer comentários.